segunda-feira, 11 de março de 2013

Forma... estilo...


Estava eu ruminando um texto de Freud* quando coloquei-me a acentuar mentalmente o fato de que a regra imposta ao analista de não querer notar nada em especial, e oferecer a tudo o que se ouve a mesma "atenção flutuante" é precedida, no tal texto, por um comentário que aponta, entendo eu, pra uma certa liberdade concedida ao analista na execução desta regra. Lacan, no Seminário 1, diz que a formalização [por Freud] das regras técnicas é assim tratada com uma liberdade que, por si só, é um ensinamento que poderia bastar, e isto tudo remeteu-me à uma famosa passagem em que Freud compara a análise a uma partida de xadrez, na qual apenas as aberturas e os finais são passíveis de uma sistematização, as jogadas não. Significa que a condução de uma análise não pode ser rigidamente  pré-determinada... Deixando-me levar por um certo deslizamento, veio-me à cabeça um significante recorrente no campo lacaniano: estilo do analista. É que a formação em psicanálise não se dá em série, como numa linha de produção, e não se limita ao molde universitário, logo os “produtos” de tal formação terão cada um sua singularidade (há de se considerar e muito o fato de que, seguindo Lacan, um analista não se coloca como modelo egóico a ser apreendido pelo analisando, fator importante para uma formação não serializada, não é mesmo?). Freud, ao estabelecer a atenção flutuante como regra, não o faz de forma a fixar as etapas que devem ser seguidas para que tal objetivo seja atingido (assim como não engessa as etapas a serem seguidas por um analista em sua clínica), apenas orienta que o analista abandone-se à memória inconsciente, afinal o Eu nessas horas só atrapalha! Lê-se em Freud a segurança de alguém que propõe-se a não selecionar o material que lhe é apresentado, a segurança de alguém que escuta de maneira flutuante as associações livres de seus analisandos, e sabemos, isto não é tão simples quanto pode parecer: assim como, do lado do analisando, a crítica consciente e a resistência impõe-se o tempo todo contra a associação livre, do lado do analista, há o perigo do Eu ardilosamente querer se intrometer, e sabemos com Lacan que o analista, ao ocupar este lugar, paga com interpretações e com sua pessoa, uma vez que pela transferência ele é literalmente despossuído dela! Daí, mais uma vez (sei sei, sou repetitiva) a importância da análise pessoal do analista, afinal como escutar o inconsciente de alguém quando não se sabe nada sobre seu próprio? Se o Eu do analista não está em questão (em outro lugar), como poderá ele desmontar as certezas imaginárias do analisando e fazê-lo avançar?

*Recomendação aos médicos que exercem a psicanálise. 

domingo, 10 de março de 2013

(Mais um) Pequeno comentário acerca da Abertura do Seminário 1 de Lacan (ou da tentativa de responder à pergunta: “Se Lacan era tão freudiano, porque não ler apenas Freud?”)

Lacan inicia seu Seminário 1 com um dito sobre a técnica zen. Considerando que tal Seminário aborda os chamados “escritos técnicos de Freud”, penso ser importante um olhar atento a esta passagem. Que teria a psicanálise a ver com a técnica zen? Aqui, neste trecho tão curto, Lacan já nos indica o que veio anunciar. Sobre o mestre budista, a lição é que este “não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la”. Em outras palavras, o mestre conduz seus discípulos pelo percurso que os leva à resposta. Mas o estilo de Lacan, que poderia talvez condensar-se sob o significante enigmático[1], nos convida ao jogo da decifração. Joguemo-lo. Lacan se alinha a tal perspectiva técnica na medida em que sua transmissão situa o leitor-ouvinte na posição de sujeito produtor de saber e não de um objeto passivo que absorveria o saber pronto e acabado do mestre. Aqui ele dá o tom de seus Seminários: difíceis, irônicos, truncados, faltosos, instigantes...
Mas Lacan não é mestre. A técnica zen, diz ele, possui um limite: mantém o dogma intacto. O mestre zen já possui a resposta (ela é sempre a mesma), apenas aguarda, pacientemente, que seu discípulo esteja preparado para ouvi-la. Mas e Lacan então, o que pretende com seus seminários? Aqui, a princípio, retornar a Freud naquilo que a psicanálise tem de constitutivo, seu vir-a-ser, sua essência não dogmática.
Neste ponto Lacan rompe com qualquer possibilidade de similitude entre o budismo e a psicanálise, ainda que faça uma aproximação, no campo da técnica, entre ambos. Ao contrário do pensamento budista, “o pensamento de Freud é o mais perpetuamente [destaque meu] aberto à revisão. É um erro reduzi-lo à palavras gastas. Nele cada noção possui vida própria.” A técnica psicanalítica não conduz à confirmação de sua identidade teórica, mas à sua negação dialética, modificando-a, ao mesmo tempo que a mantém. Entendo que é na relação entre prática e teoria, na práxis psicanalítica, que os significantes teóricos acomodam significados práticos. É o que nos diz Freud na primeira parte de sua Introdução ao Narcisismo, de 1914 e logo no início de seu Pulsões e destinos das pulsões, de 1915, por exemplo.
Aqui o retorno à Freud é, primeiramente, mas não apenas, o retorno à abertura da teoria à técnica. A técnica seria de tal modo não apenas um meio de aplicação teórica, mas ela própria um motor dinâmico da teoria. Neste sentido o psicanalista não deve, tal qual Procusto, que no horripilante mito cortava os membros de seus hóspedes de modo a fazer com que coubessem na cama que lhes oferecia, cortar qualquer indicativo prático que questione a teoria, moldando de forma acrítica sua experiência a um padrão teórico pré-estabelecido. A clínica deve interrogar a teoria.
Do ponto de vista histórico é bom lembrar que este primeiro seminário publicado de Lacan (1953-54) é expressão de sua denuncia do engessamento técnico e teórico pós-freudiano. Lacan nos ensina que revisar o pensamento de Freud é próprio da psicanálise e tal empreendimento deve ser feito por todo aquele que se pretende psicanalista. Lacan era freudiano. Caberia a nós, segundo ele, a alcunha “lacaniano”. Pois então o trabalho é grande: empreender não apenas o retorno à letra de Freud, mas também retornar ao ensino de Lacan como uma das condições necessárias para manter viva a práxis psicanalítica e o campo aberto por Freud.

Em tempo, agradeço a colaboração e interlocução de Marisa de Costa neste escrito.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Decálogo I de Kieślowski


Aviso: assistir antes de ler.
Apesar  da pretensão, não, não entendo nada de arte, tenho no máximo desconfianças... E desconfio que esse tal de  Kieślowski (assim como Trier, referência fundamental no movimentado mercado do verniz cultural) seja um desses fazedores de arte, e que Decálogo I (primeiro média-metragem de uma série de dez chamada "Decálogo", cujo fio condutor são os dez mandamentos) seja um  bom exemplo disto. Um diretor que consegue tocar o ser lá no âmago, lá onde, apesar da tentativa, não cabem palavras... é isso que sinto com esse cara!

Tudo parece dançar em harmonia melancólica nesse primeiro Decálogo, sobretudo imagem e música. O filme parece te olhar, te refletir, te chorar. O leite que se azeda ao tocar o café, a tinta que rasga o pote de vidro, prenúncios de que aquilo que resiste ao sentido e às fantasias que estruturam a realidade, está ali, à espreita! Há sempre algo passando a perna em nossas certezas, algo que por vezes nos faz tremer de dor e espanto. Por que, apesar das evidências em contrário, o maldito gelo tinha de se quebrar? A voz do quase anjo, doída e gelada, questiona: "Quem precisa saber quanto tempo leva para a Piggy alcançar o Caco? Não faz sentido." O pai  não consegue responder, não há resposta. É diante do enigma da morte que o menino duvida de sua forma de entender a realidade, uma realidade que encontra seu sentido, sua verdade, nos números, na matemática, sentido este que lhe fora transmitido pelo pai. Um sentido pouco aberto às fantasias, afinal no mundo do pai 2 e 2 são quatro, e quantas vezes terei de evocar o homem do subsolo de Dostoiévski pra explicar que se é o humano que está em causa, 2 e 2 nem sempre somam 4?

Erra aquele que pensa que só é crente aquele que acredita em Deus. A Razão pode ser tão dogmática quanto a Religião. Mas instável como a vida, o gelo se quebra, e com ele, as certezas daquele homem. Resta a dor e quem sabe uma questão: ainda que uma máquina venha a ter a capacidade de escolha, assemelhando-se ao ser humano, seria ela capaz de sentir tão profundamente o non sense existencial?

"Amar a Deus sobre todas as coisas", este é o primeiro mandamento. É mesmo necessário impregnar a existência com Eros, com amor, essa coisa que tenta insistentemente preencher o vazio que a todos habita. E que atire a primeira pedra quem (sinceramente) nunca duvidou do porque disso tudo...


terça-feira, 2 de outubro de 2012

Dostoiévski


Talvez, senhores, pensem que enlouqueci. Permitam-me fazer uma ressalva. Concordo: o homem é um animal predominantemente construtivo, destinado ao esforço consciente em direção a um objetivo e dedicado à arte da engenharia, quer dizer, à eterna e incessante construção de uma estrada — não importa para onde ela vá. E que o ponto principal não é para onde ela vai, mas que vá para algum lugar, e que uma criança comportada, mesmo que deteste a profissão de engenheiro, não deve se render àquela desastrosa indolência que, como se sabe, é a mãe de todos os vícios.
O homem ama a construção e a abertura de estradas, isso é indisputável. Mas como explicar que ele seja tão apaixonadamente propenso à destruição e ao caos? Digam-me!
Sobre esse assunto tenho algo a dizer, ainda que breve. Não será seu apego apaixonado à destruição e ao caos uma consequência do seu medo instintivo de alcançar o objetivo e completar a obra em construção? […] Mas o homem é uma criatura volúvel e de reputação duvidosa e, talvez, como um enxadrista, esteja mais interessado em perseguir um objetivo do que no objetivo em si. E, quem sabe (ninguém pode ter certeza), talvez o único propósito do homem neste mundo consista no processo contínuo de perseguir um objetivo ou, em outras palavras, de viver, e não propriamente no objetivo, que, é claro, tem de ser algo como duas vezes dois são quatro, ou seja, uma fórmula, algo que, afinal, não é a vida, mas o princípio da morte.
Fiodor (fabuloso) Dostoievski, desde 1864 ensinando sobre o Mal-estar na Cultura, o dualismo pulsional e o desejo inconsciente

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

The Big Shave - Martin Scorsese



Deparei-me com o primeiro curta de Martin Scorsese, The Big Shave (1967)  e ele causou-me forte impressão. Bom, melhor seria dizer que me causou um tremendo estranhamento, de embrulhar o estômago! Mas apesar deste estranhamento todo, enquanto esfregava aflitivamente uma mão na outra não consegui desgrudar os olhos do que associei à uma tela de devaneios onde pintara-se o retorno do recalcado, a ansiedade de castração, a compulsão à repetição... Um de meus barbudos preferidos ja explicou que uma criação artística nos remete aos elementos mais profundos da alma humana, uma vez que a arte está calcada no registro das pulsões. Lembrei-me dele dizendo que para além do belo  e da harmonia pode haver na arte uma dimensão de estranhamento, uma inquietação aparentemente estrangeira que nos remete à algo familiar, que deveria, como diz o Schelling, ter permanecido secreto e oculto mas que veio à luz! Retorno do recalcado, essa coisa que nos causa uma agonia danada! A apreensão e o desassossego que acompanharam-me durante a repetição crescente contida na cena fez-me pensar na prisão, desenhada por um Outro, em que o neurótico se confina. Pensei em sua repetida queda nas mesmas armadilhas, sua tendência a confundir o mais do mesmo em sua vida com novidade, a sangrar cotidianemente a mesma dor, a mesma amargura, sem se dar conta de que quem segura a lâmina é ele mesmo...


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Meu encontro com Freud


Um homem aproximou-se e estendeu-me a mão. Apresentou-se como Mário de Andrade e aquele parecia um nome importante. Conversamos por algum tempo, na verdade ele falava e eu ouvia, e achei tudo o que ele dizia fascinante. Contou-me sobre uma professora quarentona de francês e suas fantasias relacionadas à certa catedral. Deu-me pistas sobre algo que anos mais tarde eu conheceria como histeria. Mas a história que mais me impressionou foi a de um jantar protagonizado por um delicioso peru. Protagonizado? Não, não sei se posso me expressar assim.  Mas em um primeiro momento o peru pareceu-me o elemento central daquela história. Mario alertou-me: “tem certeza de que é do peru que se trata?” Tentou então explicar-me sobre o pai, que na história estava morto, logo, eu não havia lhe dado muita importância. Era simbólico demais pra a minha cabeça de dezesseis anos, mas dizem os psicanalistas que o pai, no plano simbólico, é o pai morto, não? Mario percebeu minha inquietação e disse: “Se você esta achando esta conversa interessante, deveria conhecer outro homem”, e o apresentou como Freud. Nome familiar, afinal, quem na vida não ouvira a máxima “Freud explica”? Este tal de Freud, com um charuto entre os dedos e uma barba bem feita, começou a falar animadamente sobre certas instâncias psíquicas, id, ego e superego e o mais chocante, sobre sexualidade infantil. “O que? Eu já desejei ter um filho de meu pai?” arregalei os olhos! A única coisa que consegui de fato entender é que o ser humano não é onde pensa ser, coisa que Lacan explicou-me bem anos depois. Deixei toda aquela complicação de lado.
Tempos depois um homem feio, de barba comprida e cabelos ralos, com um nome estranhíssimo, achegou-se a mim com um papo sobre um assassinato. O assassino tinha um nome ainda mais estranho que o seu: Raskólnikov. O jovem assassino, que se considerava um homem extraordinário, sucumbe à culpa e não vê saída senão confessar seu crime. Ou teria cometido o crime movido por ela? Fiquei curiosa com essa coisa de culpa. De onde ela viria? O homem barbudo, Dostoiévski eu acho, disse-me que lá no fundo todos nós já desejamos cometer um assassinato. Fiquei perplexa. Ele tentou explicar-me a questão com mais uma de suas histórias: a de um pai que é assassinado por um de seus filhos. Que horror! Mas a história era tão atraente que em vários momentos cheguei a pensar que aquele Karamazov, pai todo gozador, merecia mesmo o destino que lhe fora traçado. Percebendo minha empolgação, Dostoiévski contou-me que conhecia um homem que parecia saber muito sobre a alma humana (não mais que ele é certo!). “Ele até escreveu um artigo sobre minha pessoa!” disse-me. Mais uma vez quem apareceu foi aquele senhor barbudo da sexualidade infantil. Bem, tive de depor minhas armas...