No próximo mês, a "Proposição de 9 de outubro de
1967 sobre o psicanalista da Escola"[2] de
Lacan completa 50 anos. Por este motivo, a CLEAG (Comissão
Local Epistêmica de Acolhimento e Garantia, uma das instâncias da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano) propôs para o Espaço Escola do
Encontro Nacional deste ano que os Fóruns conversassem sobre este texto, para
que um representante pudesse levar algo dessas discussões a partir
dos eixos: Escola <> Passe; Escola <> Cartel; Escola
<> Fórum. Este foi o start para que as atuais
coordenadora e delegada do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso DO
SUL se propusessem a fazer hoje esta fala, pensando a
"Proposição" a partir do eixo Escola
<> Fórum.
Para começar
preciso passar minimamente por nossa sopa de letrinhas[3]. São muitas
instâncias, dispositivos e siglas que compõe a estrutura que denominamos
"Campo Lacaniano". Mas acreditem, este mosaico ou esta sopa de
letras, pura neblina num primeiro contato, vai se dissipando na medida em
que se os experimenta. Digo isto justamente a partir de minha
experiência enquanto membro de Fórum e membro de Escola.
Os Fóruns do Campo Lacaniano... a criação de uma
instância internacional que congrega Fóruns de vários países, a Internacional
dos Fóruns do Campo Lacaniano, ou IF-EPFCL, veio em resposta,
saída, ou solução à crise e ruptura de alguns (vários) com
a Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Tal crise
ficou conhecida como “A cisão de 98”. Então temos
a Internacional dos Fóruns e, no Brasil, uma Associação Nacional,
cujo nome fantasia (e que provoca mesmo muitas fantasias) é
EPFCL-Brasil (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano). A
Associação é o Fórum local e os Fóruns regionais, como o nosso no caso, ou São
Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Aracajú, Joinville, Curitiba, etc, etc..., ligam-se
à Associação, que é quem dá suporte financeiro e jurídico à Escola.
Ser membro de Fórum não é o mesmo que ser membro de
Escola e, bem, não vou tratar aqui das exceções (É claro que elas existem! Que
bom!), mas posso dizer que a entrada em um Fórum é um primeiro
passo em direção à Escola. Os Fóruns congregam todos aqueles,
incluindo psicanalistas, mas não apenas, que, de alguma forma,
estão concernidos pelo discurso psicanalítico e que estão dispostos
a, a seu modo, trabalhar para sustentar tal discurso na
civilização. Dito com Vera Iaconelli,
lugar daqueles que tomam para si "as questões sobre a formação, a
transmissão e o fim da análise", questões estas que impregnam "todo o
campo do Fórum"[4]
Falar do laço entre Fórum e Escola implica
falar da formação do psicanalista. Parto de uma questão: o que é que
se ganha sendo membro de um Fórum do Campo Lacaniano? Qual a
vantagem? Imersos na lógica capitalista que estamos,
lógica tal que reduz os objetos de desejo a mercadorias a serem
consumidas e descartadas, nesta lógica a pergunta não está fora de
contexto. Mas a resposta talvez sim: Trabalho. Lacan,
no "Ato de Fundação"[5], em 1964 (e gosto de ler a
"Proposição" como texto em continuidade com o
"Ato"), define sua Escola como um organismo de
trabalho. O que se ganha sendo membro de Fórum e, de modo geral, posteriormente, mas
não necessariamente, membro de Escola, é trabalho... Trabalho causado
pela psicanálise, trabalho no sentido de restaurar a relha
cortante da verdade psicanalítica, instituída por Freud; trabalho no sentido de
garantir que a práxis, vejam bem, PRÁXIS, original que Freud
inaugurou sob o nome de psicanálise cumpra "o dever que lhe compete em
nosso mundo", cabendo aí a crítica assídua que denuncie os desvios e
concessões que poderiam amortecer o progresso e degradar o emprego da
psicanálise (LACAN, 2003, p. 235).
Tá, tá,
tá, sopa de letrinhas, trabalho, práxis... Mas e a formação? Bem, desde
sempre, quero
dizer, desde
Freud, a formação do psicanalista se dá a partir do já famoso
tripé: análise pessoal, estudo da teoria, supervisão. Em relação à Escola
de Lacan, a formação foge ao padrão, ao padrão universitário, dos cursos, do
diploma, da carteirinha, de um tempo previamente estipulado. A garantia de
analista não passa por aí. Tão pouco passa por um mestre que autorizaria o
sujeito, que lhe diria "vá, você está pronto, la garantia soy jo!". Não. E isto pode causar confusão, decepção. "Como
assim, eu entro nesta biroska, ganho com isso trabalho e nenhum curso intensivo que
garanta que em tantas lições serei psicanalista? E a análise, me diga aí,
quanto tempo tenho de fazer, 5, 7, 20 anos?" Ah, o que posso dizer? Como
medir o tempo de assunção do sujeito do inconsciente, que é lógico e não
cronológico? Por que não permitir que cada um trilhe o caminho aberto por Freud
e tire disso as consequências que convém ao fazer psicanalítico?
Com a ajuda
de Dominique Fingermann sustento a ideia de que a formação do psicanalista e o futuro
da psicanálise depende de uma intranquilidade, um desconforto, um
desassossego. É esta intranquilidade que nos impulsiona, aos analistas, a criar
dispositivos que não reduzam a psicanálise à “mera técnica desfalcada de sua
orientação ética”[6]. Cito-a:
"... não se pode responder à questão da
formação do analista com preceitos, cartilhas e programas, estabelecidos como
sabemos com as melhores das intenções [...] as propostas de formação de
analistas coerentes com o ensino de Lacan não se dedicam a promover um 'ensino'
da psicanálise nem a responder às demandas de formação de psicanalista: não se
trata de formar ou formatar analistas, mas de propor um campo de experiência e
de interlocução no qual estará à prova o desejo de analista, ou seja, a
deformação que as análises pessoais teriam eventualmente produzido [...] é na
escola do inconsciente que o analista se transforma, não na escola dos
professores."
"Ah tah, trilhar o caminho aberto por Freud, fazer análise, supervisão,
estudar a teoria, isso tudo eu posso fazer muito bem prescindindo de
Fórum, Escola, e toda essa complicação. Se ‘é na escola do inconsciente
que o analista se transforma e não na escola dos professores’, por que a
Escola?" Gente, pergunta difícil! Proponho uma resposta furada, não-toda.
E para isto, recorro à aniversariante do mês que vem, a “Proposição”. Ali Lacan
estabelece um princípio: “o psicanalista só se autoriza por si mesmo” (e esta
afirmação é suscetível a todo tipo de equívoco. Autorizar-se por si mesmo não
tem a ver com um Eu que se auto-afirma “sou psicanalista, u-hu”. Na verdade,
será psicanalista aquele que, prescindindo da autorização do Outro,
autorizou-se ao ato analítico, e isto é apreendido à posteriori, uma vez que o
ato não é calculado pelo Eu). Mas tá, “o psicanalista só se autoriza por si mesmo”,
mas, sigo com Lacan, “isto não impede que a Escola garanta que um analista
depende de sua formação. E o analista pode querer essa garantia. ” No seminário
21, Lacan retoma isto de que o psicanalista só se autoriza por si mesmo e
acrescenta: ... "e por alguns outros". Quer dizer, por seus pares.
Quanto à
Escola, costumamos nos referir a ela como refúgio do mal-estar na civilização.
Quinet a situa como a “estranha” na civilização. Gosto também de uma definição
que ouvi de Silvana Pessoa[7], da Escola como um lugar onde as pequenas
Antígonas que são os analistas podem se encontrar. E acho excelente quando Dominique
Fingermann se refere à ela como campo de
experiência e de interlocução. Advertida quanto à solidão do ato analítico,
sustento que a escolha por fazer parte de uma comunidade de trabalho pode
amenizar tal solidão.
Isto não
significa que tudo seja lindo, perfeito e harmônico dentro de uma comunidade de
analistas. Não. "... a Escola não é
apenas local de bem-estar, já que acolhe o mal-estar da civilização - seu
rebotalho, o objeto a – para que haja chance de o discurso do analista
aí ocupar um lugar na circulação dos discursos."[8] Não é do paraíso na terra que se trata. As
crises e rupturas estão inscritas na história do movimento psicanalítico. Nos
Fóruns e na Escola, o laço deve se dar em torno da causa analítica, movimentado
pelas transferências de trabalho. O que, é claro, não excetua os laços
fraternos, laços de amizade, as afinidades, mesmo porque isto é inevitável. Não
estamos livres das idealizações e tão pouco do narcisismo das pequenas
diferenças, que segrega em nome da coesão do grupo. Ou seja: as comunidades
psicanalíticas não estão imunes aos efeitos de grupo. O que impediria, por
exemplo, que analisandos que tenham o mesmo analista liguem-se entre si,
identificando-se, portanto, no nível do eu ideal uns com os outros, em torno
daquele colocado como ideal de eu, o analista (com toda ambivalência que pode
estar presente aí, é claro) num movimento de apagamento e isolamento daqueles
que não fazem parte da patota? Isto é só um exemplo, uma forma de colocar em
imagem a questão, vejam como o combate à estrutura da psicologia das massas é
uma constante. Afinal, ainda que alguém não se coloque na posição de mestre,
chefe, líder, UM, o que seria pura impostura, este alguém pode ser alçado à
esta posição por conta das transferências que suscita, e deve responder à
altura. Não foi a troco de nada que Lacan propôs como base de trabalho em sua
Escola o cartel.
Uma
comunidade em que, como escreve Maria Anita Carneiro Ribeiro a respeito da
cisão de 1998, “circulem os quatro discursos e, sobretudo, da qual o discurso
analítico não esteja excluído”[9] é algo que nos desafia a todo momento. E o
que posso dizer por enquanto, considerando meu percurso e experiência, é que
nosso Fórum, a Associação e a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo
Lacaniano tem respondido este desafio à altura.
[1]
Fala apresentada no Espaço Escola do FCL-MS em 16-09-2017.
[2]
LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.
In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 248-264.
[4]
IACONELLI, V. AEscola. In: Stylus: Revista de Psicanálise, n.34. Rio
de Janeiro: AFCL/EPFCL – Brasil, 2017,
PP. 139 144.
[5]
LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,
2003, pp. 235-247.
[6]
FINGERMANN, D. A (de)formação do psicanalista: as condições do ato
psicanalítico. São Paulo: Escuta, 2016, p. 32.
[7] Ética e desejo de analista – Maria Lucia Homem, Silvana Pessoa e Shirley
Sesarino – Maria Lucia Homem, Silvana Pessoa e Shirley Sesarino, https://lacaneando.com.br/audio/.
[8]
QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 120.
[9]
RIBEIRO, M.A.C. A cisão de 1998. In: Pulsional Revista de Psicanálise, ano
XIII, n 137, pp. 83-89.
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