quinta-feira, 7 de maio de 2015




Amor sem sexo – Algumas considerações sobre transferência e desejo do analista.
Francina Sousa.

O título deste pequeno escrito faz equívoco com o tema do XV Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil, Amor e Sexos, ocorrido em novembro de 2014 em Campo Grande – MS. Afinal, o analista sabe: o romance psicanalítico, a aparente parceria aí instituída, é sui generis. Amor e desejo estão envolvidos. Amor de transferência, desejo do analista. O primeiro termo, se correspondido, mina as possibilidades daquele que ali se apresenta como objeto de Outro advir como sujeito de seu desejo. O segundo termo, desejo do analista, refere-se à um desejo novo, produto da destituição subjetiva inerente ao final de análise. Partindo da investigação do conceito de transferência em minha experiência de cartel, impôs-se à mim a necessidade de entender melhor aquilo que apresentou-se como contrapartida: o desejo do psicanalista. É em torno destes dois conceitos, que tomo sob o ângulo de minhas questões, sem portanto pretender esgotá-los, que faço aqui minhas considerações. Sinuosas, marcadas por avanços, recuos, rodeios... Em outras palavras, considerações “guiadas por alguma bússola que se cria a partir de uma experiência” (LACAN, 1992, p.72).
Para que a entrada em análise ocorra, o candidato à analisante deve amar, ou melhor, tornar-se um amante. Amante cujo amor é endereçado ao saber sobre si, objeto precioso que será atribuído ao analista. É necessária uma transformação: onde era queixa, que advenha a questão! Do não quero saber nada disto que me faz ser quem sou, posição que submete o sujeito, tal qual o Édipo de Sófocles, aos desígnios de um destino traçado pelas ações inscritos no discurso de seus ancestrais, à detetive investigativo de si mesmo, em busca da carta roubada na qual se escreve seu desejo. Aquele que chega na condição de objeto dos maus agouros da existência, vítima das sinapses que acredita determina-lo, torna-se um sujeito animado pela indagação sobre sua própria responsabilidade na desordem da qual se queixa, conforme Freud nos ensina com o caso Dora. Retificação subjetiva, substituição de um sujeito por outro, metáfora.
Metáfora? A longa introdução do seminário sobre a Transferência, no qual Lacan toma o Banquete de Platão como fio condutor, não traz a última palavra do psicanalista sobre o amor e a transferência, mas indicações valiosas. Em sua análise do discurso de Fedro, a lição que extraio é de que o amor, ou melhor, o ato de amar, implica em uma metáfora. Momento em que amado, aquele que se situa numa posição de objeto de amor, torna-se amante, termo que implica o desejo como motor. Lacan ilustra esta operação com um estranho mito: uma mão que se dirige desejosa em possuir um objeto inanimado. Deste objeto, milagrosamente, estende-se outra mão, que busca pela primeira. Encontro que não ocorre, dada a dissimetria intrínseca ao amor, as mãos não se tocam, permanecem neste espaço eterno (enquanto dura) tentando encontrar-se. Mas ali onde estava um objeto, eis que aparece um sujeito!
“É na medida em que a função do érastès, do amante, na medida em que é ele o sujeito da falta, vem no lugar, substitui a função do érôménos, o objeto amado, que se produz a significação do amor.” (LACAN, 1992, p. 47)

Amante pois ele é ativo no que tange ao dispositivo analítico, pois “só se entra em análise quando se põe seu próprio ‘não sei’ a trabalhar”(SOLER, 2011, p.5).
Amor de transferência, que amor é este? De acordo com Colette Soler, trata-se de um amor que inverte as aspirações do amor comum. Enquanto este último se dá pela via do milagre, do encontro, tykhê, e aspira ao para sempre, o amor de transferência não se produz pelo encontro e sim por necessidade, “desencadeado quase automaticamente pelo artifício do dispositivo.” Não aspira ao para sempre e sim que isto cesse. O amor de transferência “questiona sobre o seu fim. É um fato clínico que desde a entrada o analisante vise a saída, por vezes até a ideia fixa, e à medida disto que o cativa.” (1998, p.310).
Mas e o analista? Corresponde à demanda de amor que lhe é endereçada? Para sustentar o amor de transferência, aquele que ocupa a função de analista deve ter seu desejo situado em um ponto que não se confunde com os sentimentos que a situação analítica lhe suscita, deve ser “possuído por um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de chegar as vias de fato com seu paciente, de toma-lo nos braços ou atirá-lo pela janela.” (LACAN, 1992, p.187). O analista “antes de mais nada ele banca o dejeto: faz descaridade. Isso para realizar o que a estrutura impõe, ou seja, permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, toma-lo por causa de seu desejo” (LACAN, 1993, p.32-33). O analista está no instante de sua interpretação, de seu ato.
No texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan nos ensina que na “empresa comum” que chamamos de analise, analista e analisando entram cada qual com sua cota. Isto significa que há um custo para o sujeito não apenas enquanto analisante: há um custo para se ocupar a função de analista. Neste “investimento de capital da empresa comum”, ao analisante, não basta o investimento financeiro: ele deve pagar com a associação livre, definida por Colette Soler como irmã gêmea do amor de transferência (1998, p. 310). E é papel do analista sustentar e garantir espaço para que ela ocorra. O que não é tarefa para qualquer um, mas para um qualquer. Um rebotalho.
Segundo Freud, a escuta analítica pressupõe que o analista acentue os significantes ditos pelo paciente com a mesma nota, ele deve “escutar e não se preocupar em notar alguma coisa” (2010, p.150). Associação livre do lado do analisando, atenção flutuante por parte do psicanalista, regras fundamentais da psicanálise. Simples? Fácil? Sabe de nada inocente!! De um lado, analisando luta para vencer suas resistências e de fato dizer tudo o que lhe passa pela cabeça. Dizer tudo que lhe passa pela cabeça, isto não é simples. O amor de transferência o coloca ali, disposto a despir-se por meio de suas palavras, mas a resistência apoia-se na transferência e o faz opor-se ao “dizer tudo”: E se ele não gostar do que eu disser? Aliás, o que é que ele quer que eu diga? O que ele quer dizer? Quem ele pensa que eu sou?! O que ele quer que eu queira? Será que está me entendendo? Não, não está! Posições, entre outras, do analisando frente ao analista, movido pelo desejo de ser objeto de desejo do grande Outro que nele localiza.
Do outro lado, o analista consente em receber aquele material ao preço de sufocar-se enquanto eu. Sufocar-se? Angústia. Pois o praticante, guiado pela teoria, angustia-se diante da regra de abster-se de si mesmo. Tem horror ao ato posto que este aponta não apenas para o furo, para a castração do analisante, mas para sua própria castração. Porém chega o momento de sua prática em que o eu do analista deixa de estar ali e nem por isso se debate, ele se cala. A análise pessoal lhe permite e a clínica aliada à supervisão lhe ensinam a ocupar outra posição, responder de outro lugar, no qual o desejo do analista sustenta a atenção flutuante. Afinal, as exigências que o eu impõe ao iniciante em sua clínica situam-se do lado de um saber supostamente todo, quando na realidade é para as inconsistências deste saber que o analista aponta. Atuar de modo a ocupar um lugar de saber, e não de suposto saber, coloca o jogo a ser perdido.
Na relação analítica, não é apenas com a interpretação que o analista paga, ele paga “também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência” (LACAN, 1998, p. 593). Além disso, o analista deixa seu juízo de fora da partida. Ele joga como morto[1]. Esta é sua estratégia, que responde à uma política da falta-a-ser. Como nos ensinam Freud e Lacan, em sua tática ele tem maior liberdade, as jogadas possíveis, tal qual no jogo de xadrez[2], são inúmeras...  
 Entendo a clínica como teoria em ato e a teoria como saber clínico sedimentado em conceito. O que apreendi até este momento de minha experiência é que o “jamais somos iguais à nossa função” (LACAN, 1998, p.189) tem um sentido lógico, e arrisco-me a interpretá-lo: função na qual o analista se reconhece mas com a qual não se confunde. Com a qual o eu do analista não deve se confundir mas que, frente a determinadas coordenadas, insiste e coloca pontos de resistência em sua escuta. Felizmente, apesar do eu, ou seja, da dimensão imaginária estar à espreita na cena analítica, um analista vale menos pelas possíveis bobagens que possa dizer (erros táticos) que pela posição que ocupa na direção do tratamento (sua estratégia e política).

REFERÊNCIAS
FREUD, S. Recomendações ao médico que pratica psicanálise. In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”): artigos sobre a técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, J. O seminário livro 8 – A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1993.
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
SOLER, C. Que final para o analista? In: A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.
SOLER, C. O tempo longo In: Wunsch 11 Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. 2011.


Francina Sousa,
Psicanalista, atual coordenadora do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul (2015-2016), membro do Ágora Instituto Lacaniano.

 Texto publicado em: http://lacaneando.com.br/amor-sem-sexo-algumas-consideracoes-sobre-transferencia-e-desejo-do-analista-2/ 





[1] Referência ao jogo de bridge.
[2] Referência ao texto de Freud “O início do tratamento”, de 1913.