quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Texto meu, um dos Prelúdios para o XV Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil, que será em Campo Grande-MS neste ano.

PRELÚDIO 1:

A insustentável leveza do amor.

Francina Sousa


Prelúdio, significante definido pelo dicionário Houaiss da língua portuguesa como “ato preliminar, primeiro passo para (alguma coisa)”, entre outras definições. Trata-se aqui de Ato Preliminar para um Encontro. Em nossa língua o significante “preliminar” facilmente nos remete ao ato sexual, e é dispensável elucidar que amor e sexo nem sempre são solidários, a experiência nos ensina. Permitam-me, pois, uma pequena consideração sobre o amor, primeiro termo de nosso tema.
No começo, o verbo. Amar, do ponto de vista da sintaxe da língua portuguesa, é transitivo. Significa que ele necessita de um complemento, algo que o acompanhe direta ou indiretamente, já que seria carente de algo por natureza. O escritor intui e adverte: amar é verbo intransitivo. Não combina com complementos posto que este significante remete à completude. E não há tal coisa no Amor, ele é tão manco quanto os corações daqueles que toca. O Amor é intransitivo. Não porque encontre tudo de que necessita em si mesmo dispensando todo e qualquer acessório, mas porque os complementos não lhe bastam! Intransitivo, uma vez que não há trânsito entre os amantes, aqueles que compõem a dissonante canção Amor. Gênio responsável pela comunicação entre os seres, não um Deus, o Amor não é maiúsculo...
Aspirando à possibilidade de ser todo, o amor faz com que os amantes acreditem na existência da relação sexual e que dois podem unir-se em Um. A ficção que chamamos amor aparece justamente para nos proteger do horror da não complementariedade entre os sexos. Dois serão sempre dois, apesar do Aristófanes de Platão ter ainda ecos no imaginário ocidental. Aliás, com o mito de Aristófanes, estamos exatamente no nível que nós, modernos, interpretamos o amor. Animado por este sentimento cômico, o amante busca algo para dar ao objeto de amor e é ativo e astucioso nesta interminável busca. Amor é esta crença de que encontramos no outro, na pessoa amada, algo que nos é precioso, aquilo que nos falta, um bem do qual queremos gozar e tal bem nos desperta para o desejo. Só que “o que falta a um não é o que existe, escondido, no outro. Aí está todo o problema do amor”[1], já nos diz Lacan nas primeiras páginas do Seminário sobre a Transferência. Caetano canta o desencontro da bruta flor do querer amoroso já que “onde queres revólver, sou coqueiro/E onde queres dinheiro, sou paixão/Onde queres descanso, sou desejo/E onde sou só desejo, queres não.”
Para tornar-se um amante, para ser tocado e animado pelo amor, uma transformação faz-se necessária. Mais precisamente uma metáfora, “na medida em que aprendemos a articular a metáfora como substituição”[2]. Um sujeito deve vir em lugar de outro. Seguindo o Lacan do Seminário 8, onde era o amado (objeto), deve o amante (sujeito) advir. Lacan ilustra esta operação com um estranho mito: uma mão que se dirige desejosa em possuir um objeto inanimado. Deste objeto, milagrosamente, estende-se outra mão, que busca pela primeira. As mãos não se tocam, permanecem neste espaço eterno (enquanto dura) tentando encontrar-se.
Recorro ao “nosso” Milan Kundera[3] e sua obra maior, A Insustentável Leveza do Ser, verdadeira lição sobre o amar na modernidade, para tentar expressar o milagre inerente à significação do amor. Este livro conta a história de amor entre Tomas e Tereza. O narrador revela ao leitor o momento preciso em que Tomas cai de amor por Tereza. Até então, fora ele um celibatário decidido, que havia encontrado um equilíbrio entre seu desejo e temor das mulheres naquilo que batiza como “amizade erótica”. Ingênuo, assim como o Erixímaco do Banquete, acredita que o equilíbrio, a harmonia seria possível entre os corações. Tomas tem inúmeras amantes, não ama nenhuma delas. No entanto o homem preparado e convencido a permanecer celibatário trai-se. É nesta traição que a falta e o desejo se expressam. A crença que o suposto equilíbrio de estar com todas e nenhuma ao mesmo tempo lhe trazia desmorona no momento em que é atingido pelo amor, momento em que está diante desta mulher que mal conhece e que vê pela segunda vez.
O que permite a Tomas sair de sua posição anterior, o que teria essa mulher de tão especial? Para ser amada por um homem uma mulher deve oferecer-se como objeto causa de seu desejo, objeto a. Tereza aparece exatamente neste lugar. Imaginariamente unido a ela, Tomas sente que não sobreviveria à sua morte, como se fossem parte vital um do outro. Para ele, Tereza “não era nem amante nem esposa. Era uma criança.” Abandonada. Esta é a metáfora que representa Tereza em seu inconsciente e que funciona justamente para que ele, Tomas, metaforize-se em outro, aquele que salva e protege esta criança:

“Mais um vez ocorreu-lhe que Tereza era uma criança posta numa cesta untada com resina e abandonada ao sabor da corrente. Como deixar derivar para as águas impetuosas de um rio a cesta onde se abriga uma criança? Se a filha do faraó não tivesse retirado das águas a cesta do pequeno Moisés, não teria havido o Velho Testamento e toda a nossa civilização! No começo de tantos mitos antigos, existe sempre alguém que salva uma criança abandonada. Se Pólibo não tivesse recolhido o pequeno Édipo, Sófocles não teria escrito sua mais bela tragédia! Tomas compreendeu então que as metáforas são perigosas. Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora” (p.16)

Sim. As metáforas são perigosas. O amor nasce de uma simples metáfora...


[1] LACAN, J. O Seminário, livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 46
[2] LACAN, J. Idem, p. 47.
[3] Refiro-me aqui ao Milan Kundera que “fala português”, uma vez que tomo como significante de minha análise a tradução de Tereza B. Carvalho da Fonseca da obra A Insustentável leveza do ser, e não o texto em sua língua original.