domingo, 16 de dezembro de 2012

Decálogo I de Kieślowski


Aviso: assistir antes de ler.
Apesar  da pretensão, não, não entendo nada de arte, tenho no máximo desconfianças... E desconfio que esse tal de  Kieślowski (assim como Trier, referência fundamental no movimentado mercado do verniz cultural) seja um desses fazedores de arte, e que Decálogo I (primeiro média-metragem de uma série de dez chamada "Decálogo", cujo fio condutor são os dez mandamentos) seja um  bom exemplo disto. Um diretor que consegue tocar o ser lá no âmago, lá onde, apesar da tentativa, não cabem palavras... é isso que sinto com esse cara!

Tudo parece dançar em harmonia melancólica nesse primeiro Decálogo, sobretudo imagem e música. O filme parece te olhar, te refletir, te chorar. O leite que se azeda ao tocar o café, a tinta que rasga o pote de vidro, prenúncios de que aquilo que resiste ao sentido e às fantasias que estruturam a realidade, está ali, à espreita! Há sempre algo passando a perna em nossas certezas, algo que por vezes nos faz tremer de dor e espanto. Por que, apesar das evidências em contrário, o maldito gelo tinha de se quebrar? A voz do quase anjo, doída e gelada, questiona: "Quem precisa saber quanto tempo leva para a Piggy alcançar o Caco? Não faz sentido." O pai  não consegue responder, não há resposta. É diante do enigma da morte que o menino duvida de sua forma de entender a realidade, uma realidade que encontra seu sentido, sua verdade, nos números, na matemática, sentido este que lhe fora transmitido pelo pai. Um sentido pouco aberto às fantasias, afinal no mundo do pai 2 e 2 são quatro, e quantas vezes terei de evocar o homem do subsolo de Dostoiévski pra explicar que se é o humano que está em causa, 2 e 2 nem sempre somam 4?

Erra aquele que pensa que só é crente aquele que acredita em Deus. A Razão pode ser tão dogmática quanto a Religião. Mas instável como a vida, o gelo se quebra, e com ele, as certezas daquele homem. Resta a dor e quem sabe uma questão: ainda que uma máquina venha a ter a capacidade de escolha, assemelhando-se ao ser humano, seria ela capaz de sentir tão profundamente o non sense existencial?

"Amar a Deus sobre todas as coisas", este é o primeiro mandamento. É mesmo necessário impregnar a existência com Eros, com amor, essa coisa que tenta insistentemente preencher o vazio que a todos habita. E que atire a primeira pedra quem (sinceramente) nunca duvidou do porque disso tudo...


terça-feira, 2 de outubro de 2012

Dostoiévski


Talvez, senhores, pensem que enlouqueci. Permitam-me fazer uma ressalva. Concordo: o homem é um animal predominantemente construtivo, destinado ao esforço consciente em direção a um objetivo e dedicado à arte da engenharia, quer dizer, à eterna e incessante construção de uma estrada — não importa para onde ela vá. E que o ponto principal não é para onde ela vai, mas que vá para algum lugar, e que uma criança comportada, mesmo que deteste a profissão de engenheiro, não deve se render àquela desastrosa indolência que, como se sabe, é a mãe de todos os vícios.
O homem ama a construção e a abertura de estradas, isso é indisputável. Mas como explicar que ele seja tão apaixonadamente propenso à destruição e ao caos? Digam-me!
Sobre esse assunto tenho algo a dizer, ainda que breve. Não será seu apego apaixonado à destruição e ao caos uma consequência do seu medo instintivo de alcançar o objetivo e completar a obra em construção? […] Mas o homem é uma criatura volúvel e de reputação duvidosa e, talvez, como um enxadrista, esteja mais interessado em perseguir um objetivo do que no objetivo em si. E, quem sabe (ninguém pode ter certeza), talvez o único propósito do homem neste mundo consista no processo contínuo de perseguir um objetivo ou, em outras palavras, de viver, e não propriamente no objetivo, que, é claro, tem de ser algo como duas vezes dois são quatro, ou seja, uma fórmula, algo que, afinal, não é a vida, mas o princípio da morte.
Fiodor (fabuloso) Dostoievski, desde 1864 ensinando sobre o Mal-estar na Cultura, o dualismo pulsional e o desejo inconsciente

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

The Big Shave - Martin Scorsese



Deparei-me com o primeiro curta de Martin Scorsese, The Big Shave (1967)  e ele causou-me forte impressão. Bom, melhor seria dizer que me causou um tremendo estranhamento, de embrulhar o estômago! Mas apesar deste estranhamento todo, enquanto esfregava aflitivamente uma mão na outra não consegui desgrudar os olhos do que associei à uma tela de devaneios onde pintara-se o retorno do recalcado, a ansiedade de castração, a compulsão à repetição... Um de meus barbudos preferidos ja explicou que uma criação artística nos remete aos elementos mais profundos da alma humana, uma vez que a arte está calcada no registro das pulsões. Lembrei-me dele dizendo que para além do belo  e da harmonia pode haver na arte uma dimensão de estranhamento, uma inquietação aparentemente estrangeira que nos remete à algo familiar, que deveria, como diz o Schelling, ter permanecido secreto e oculto mas que veio à luz! Retorno do recalcado, essa coisa que nos causa uma agonia danada! A apreensão e o desassossego que acompanharam-me durante a repetição crescente contida na cena fez-me pensar na prisão, desenhada por um Outro, em que o neurótico se confina. Pensei em sua repetida queda nas mesmas armadilhas, sua tendência a confundir o mais do mesmo em sua vida com novidade, a sangrar cotidianemente a mesma dor, a mesma amargura, sem se dar conta de que quem segura a lâmina é ele mesmo...


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Meu encontro com Freud


Um homem aproximou-se e estendeu-me a mão. Apresentou-se como Mário de Andrade e aquele parecia um nome importante. Conversamos por algum tempo, na verdade ele falava e eu ouvia, e achei tudo o que ele dizia fascinante. Contou-me sobre uma professora quarentona de francês e suas fantasias relacionadas à certa catedral. Deu-me pistas sobre algo que anos mais tarde eu conheceria como histeria. Mas a história que mais me impressionou foi a de um jantar protagonizado por um delicioso peru. Protagonizado? Não, não sei se posso me expressar assim.  Mas em um primeiro momento o peru pareceu-me o elemento central daquela história. Mario alertou-me: “tem certeza de que é do peru que se trata?” Tentou então explicar-me sobre o pai, que na história estava morto, logo, eu não havia lhe dado muita importância. Era simbólico demais pra a minha cabeça de dezesseis anos, mas dizem os psicanalistas que o pai, no plano simbólico, é o pai morto, não? Mario percebeu minha inquietação e disse: “Se você esta achando esta conversa interessante, deveria conhecer outro homem”, e o apresentou como Freud. Nome familiar, afinal, quem na vida não ouvira a máxima “Freud explica”? Este tal de Freud, com um charuto entre os dedos e uma barba bem feita, começou a falar animadamente sobre certas instâncias psíquicas, id, ego e superego e o mais chocante, sobre sexualidade infantil. “O que? Eu já desejei ter um filho de meu pai?” arregalei os olhos! A única coisa que consegui de fato entender é que o ser humano não é onde pensa ser, coisa que Lacan explicou-me bem anos depois. Deixei toda aquela complicação de lado.
Tempos depois um homem feio, de barba comprida e cabelos ralos, com um nome estranhíssimo, achegou-se a mim com um papo sobre um assassinato. O assassino tinha um nome ainda mais estranho que o seu: Raskólnikov. O jovem assassino, que se considerava um homem extraordinário, sucumbe à culpa e não vê saída senão confessar seu crime. Ou teria cometido o crime movido por ela? Fiquei curiosa com essa coisa de culpa. De onde ela viria? O homem barbudo, Dostoiévski eu acho, disse-me que lá no fundo todos nós já desejamos cometer um assassinato. Fiquei perplexa. Ele tentou explicar-me a questão com mais uma de suas histórias: a de um pai que é assassinado por um de seus filhos. Que horror! Mas a história era tão atraente que em vários momentos cheguei a pensar que aquele Karamazov, pai todo gozador, merecia mesmo o destino que lhe fora traçado. Percebendo minha empolgação, Dostoiévski contou-me que conhecia um homem que parecia saber muito sobre a alma humana (não mais que ele é certo!). “Ele até escreveu um artigo sobre minha pessoa!” disse-me. Mais uma vez quem apareceu foi aquele senhor barbudo da sexualidade infantil. Bem, tive de depor minhas armas...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Anti Cristo

Parte II - Freud está morto.

Ok, sei que precisamos falar sobre Kevin, mas não é o momento, não o meu... Depois de tanto tempo,  continuo (ainda) a ruminar esse Trier... No filme tive a impressão de que justamente quando o homem começa a desconfiar de que não tem o controle sobre si e muito menos da situação e diz pra sua mulher que anda tendo uns sonhos estranhos, esta ironicamente age como ele até então: fecha a questão afirmando que “os sonhos não significam mais nada para a psicologia moderna, afinal, Freud está morto, não?” Assim ela obstrui o caminho que poderia levá-lo a abandonar a posição iludida de senhor de si mesmo. Lembrei-me de algo que li: “O desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar. O que pode você ver de ‘prometeico’ nisso?” Encontrei esta frase logo no início da Interpretação dos sonhos e não pude deixar de pensar no quanto esta assertiva sobre os sonhos condensa uma série de noções em psicanálise. Aliás, como escreveu uma amiga, parece que praticamente toda psicanálise está nesta obra... Acho fantástico que Freud tenha, em plena modernidade cartesiana, se valido dos momentos em que o homem era onde não se pensava, percebido nas cotidianas formações do inconsciente (sonhos, chistes e atos falhos) aquilo que aparece quando o Eu cochila. E o que podemos ver de prometeico nisso? Penso que, assim como Prometeu, que acorrentado e agonizante não deixa de gritar o seu destino, o que é recalcado (condenado, banido) não deixa de se agitar e procura de toda forma fazer-se ouvir. Por menos que o Eu queira saber d’Isso! Por outro lado, o ato de roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens marca um antes e um depois: depois do ato, um saber inédito que muda o destino da humanidade. E o que pode você ver de "freudiano" nisso?  Freud pode estar morto, mas suas idéias "acorrentadas" (pelo apagamento do sujeito do inconsciente por aquele tal discurso do capitalista, pelas neurociências ou pela tal "psicologia moderna"...), agitam o submundo humano e até hoje, por menos que se queira, o eco de sua descoberta faz-se presente, e tanto nosso cotidiano quanto a tempestade pulsional que o personagem enfrentará em sua mulher no filme não nega isso. 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

E logo na abertura do Seminário 1 Lacan dá o tom: “O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la. Essa forma de ensino é uma recusa de todo sistema.” Penso que aqui Lacan marca não apenas a necessidade de retorno ao pensamento de Freud, que segundo ele é perpetuamente aberto à revisão, mas também marca um posicionamento político em relação à situação da psicanálise naquele momento, década de 1950. Sua fala quanto ao mestre faz-me pensar no próprio ensino por ele proposto ao longo de seus Seminários. “Lacan é muito difícil, é incompreensível!!!!” - é o que se escuta por aí. Mas a forma de ensino inaugurada por Lacan tem lá seus motivos, afinal a psicanálise não é apenas uma técnica que se aplica e sim uma prática que se transmite. Tenho a impressão de que Lacan, com todo seu barroquismo, nos convida a decifrá-lo. Não nos dá uma resposta pronta, antes nos faz questionar o mundo e a nós mesmos. Convida-nos a procurar um saber, não qualquer um, mas o saber inconsciente. E tenho a viva impressão de que à medida que se caminha em uma análise, lugar privilegiado de “procura-ação” do desejo inconsciente, o ensino de Lacan  ganha cada vez mais sentido...
...

E naquele dia de estudo surgiu a questão: a psicanálise é ou não é uma ciência? Uma questão aparentemente inocente e que mereceria uma resposta objetiva (ao gosto da dita ciência): sim ou não. Mas quando se trata de psicanálise, nada é assim tão objetivo, não é mesmo? Em outro lugar escrevi que a formação psicanalítica (e a psicanálise) perturba o conforto das dicotomias da epistemologia ocidental – teoria e prática, sujeito e objeto – pois entendo que apesar de psicanálise e ciência tratarem do mesmo sujeito, aquele advindo da modernidade, o lugar que este ocupa nos Discursos da Ciência e da Psicanálise não é o mesmo. Por isso a psicanálise conFUNDE nossa cabeça ao dizer de um sujeito que se coloca como objeto (o analista) e um objeto que é tratado como sujeito (o analisando). É no lugar de objeto (causa de desejo) que o psicanalista (a psicanálise) instiga aquele ali deitado no divã a perSEGUIR seu desejo; coloca o sujeito do inconsciente em ação, capturando-o na linguagem, nos significantes, para que a consciência dele se dê conta. É por isso que o psicanalista não dá respostas prontas, mas permite ao sujeito caçá-las por sua própria conta e risco. É o posicionamento do psicanalista em sua prática que permite ao sujeito buscar, reconhecer e responsabilizar-se por seu desejo. A práxis psicanalítica é transmitida no um a um, como nos ensina Lacan, e permite-nos, após ler complicadas palavras “significantes”, ainda que não se entenda tudo ou que se entenda muito pouco, ao invés de desistir, ter um delicioso desejo (por vezes amalgamado em angústia) de saber mais! Quanto à questão da psicanálise ser ciência ou não, a indicação de texto que Maria Luiza fez (http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1414-98932005000100006&script=sci_arttext&fb_source=message) é um ótimo aperitivo e, para os mais ousados, o texto de Lacan “A ciência e a verdade” esclarecedor.

sábado, 7 de abril de 2012

Um dia em que o desejo falou?

Há 3 anos atrás ela era mãe há 2. O mês, maio, e o dia que lhe fora destinado pelo comércio estava se aproximando. Uma criança de 2 anos não poderia escolher o presente para lhe dar, a escolha sobraria então para o pai da criança. A ideia de deixar a escolha nas mãos dele, lá no fundinho, lhe agradava, pois sabia que, como sempre, ele faria uma má escolha, e ela teria motivo suficiente para apontar aquele erro e reclamar, seu esporte histérico preferido. Mas estava, sabe-se lá o por quê, cansada do jogo de reclamação, e ri disso enquanto, no divã, conta esta história. Decidiu que ela escolheria o presente, restaria ao pai apenas o trabalho de compra-lo, e este aceitou o "desafio" com satisfação. Mas o que escolher? Um livro! foi o que lhe passou pela cabeça. Que livro? Dostoiévski, claro! Qual obra? Bom, aqui chegamos à um nível maior de dificuldade. Deveria ela escolher uma obra que lera na adolescência, uma que nunca lera, uma obra maior ou uma (dita) obra menor? A brincadeira da escolha parecia tão divertida que pediu ajuda ao google. E lá, em meio a tantos Dostoiéviskis enxergou um nome importante: Freud. Só aí se deu conta de que em "Dostoiéviski e o parricídio" Freud escrevera que Os Irmãos Karamazovi era o maior romance já escrito. Pronto, a decisão estava tomada, Freud escolhera por ela. "Não, você escolheu por Freud" corta a analista. 



sábado, 31 de março de 2012

Sozinha

Sozinha, sozinha... sozinha, significante que, paradoxalmente, tem me feito companhia nos últimos dias. Não que o cotidiano seja solitário, nada disso. A realidade é psíquica e é de lá que ecoa “sozinha, sozinha... sozinha”. Soz-inha. Meu pai costumava chamar minha mãe de Inha. Não chama mais. Meu irmão costumava chamar-me CinInha. Não chama mais. Costumava me fazer companhia. Não faz mais. Há 29 anos ele me deixou e só agora ensaio deixa-lo. Deixa-lo, como dizem os cristãos, descansar em paz, pra tentar caminhar sozinha, sozinha... sozinha.