sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


Em uma conversa com Maria Rita Kehl, ouvi que com Emma Bovary, Flaubert “criou o retrato da feminilidade ao modo burguês”, feminilidade muito bem situada historicamente e que diz respeito ao lugar destinado à mulher pelo discurso moderno. Em Freud (e não em psicanálise), feminilidade e histeria praticamente se recobrem e não à toa Emma pode também ser apreendida como representação da mulher histérica por excelência. Esse argumento é conhecido e faz muito sentido. Digo “muito” pois se dissesse “todo sentido” estaria traindo o argumento psicanalítico, afinal  há sempre algo que escapa ao humano, algo que falta para completar o quebra-cabeça como um-todo. IMAGINAMOS saber de tudo, SIMBOLIZAMOS para com-viver, mas convenhamos, na REAL, a realidade não passa de ficção, é psíquica!
Seguindo a argumentação de Kehl, penso que Dostoiévski não fez menos em relação à experiência masculina moderna. Se “Flaubert decidiu se valer da biografia imaginária de uma mulher, e fazer fracassar sua empreitada para tornar-se ‘outra’” como forma de denúncia das “tolices e ilusões que alimentam (ainda hoje) o modo de vida burguês”, Dosta, como gosto de chamá-lo, nos convida a um passeio pela angustia daquele cujo lugar no discurso social da recém nascida modernidade é de portador do falo, a angustia de quem se acredita todo ainda que a falta nele pulse em ritmo cardíaco, aquele que é convocado a ser o representante da Lei e no entanto não se sente capaz ou mesmo digno de cumpri-la, permanecendo em dívida.  Dosta representa em suas personagens a contradição, a dúvida, a indecisão, a racionalização, a procrastinação, o sofrimento por uma ideia que se impõe ao pensamento, a sensação de ridículo e absurdo que assolam o homem moderno, em sua maioria, neuróticos obsessivos. Ivan, esse mal-dito Karamazov, perturbado pela culpa por um assassinato que não cometeu, mas pelo qual se responsabiliza; Mítia, outro mal-dito Karamazov, com sua razão desvairada, que só se acalma quando punido pelo crime que não cometeu, como quem assume a culpa. Ambos expressam a ideia de que, do ponto de vista simbólico, somos todos assassinos. Ambos, em sua relação com a lei, e aqui sigo Camus, dizem da inutilidade do crime para o remorso. Pois somos responsáveis por aquilo que desejamos, ainda que desse desejo saibamos apenas os sintomas...

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Anti Cristo

Parte I ou Da ingenuidade da razão.
Em tempos de capitalismo apressado, escrever sobre um filme “antigo” como Anti Cristo de Lars Von Trier, grife do cinema pretenso intelectual (que adoro), pode parecer antiquado. Ressalva sem sentido para o inconsciente, já que ali o tempo não caminha ano após ano, dia após dia, hora após hora... Confesso que demorei certo tempo pra ter coragem de ver o filme. O pano de fundo, um casal que perde seu filho pequeno, e que se isola em uma cabana no meio da mata, parecia assustador e familiar demais pro meu gosto. Só que esqueceram de me avisar que a cena em que o garotinho parece saltar alegremente para a morte era o que havia de menos perturbador no filme. Bem, em tempos de Melancolia, achei que era boa hora de assisti-lo.
Entendo que buscar um sentido pleno ao filme seria incorrer na mesmíssima arrogância do terapeuta que, ao lado da mulher, protagoniza o filme. Faço apenas algumas observações. Frente ao real da perda de um filho, o presunçoso terapeuta considera-se apto a tratar o luto prolongado de sua mulher, e para isso recorre à uma "técnica": confrontá-la com aquilo que lhe causa medo, no caso, uma cabana horrorosa no meio da mata, Éden. Mas não é de Éden, como ele a forçou a concluir, que ela tem medo, e sim da selvageria e obscenidade abafados nos porões do eu. Não à toa ela lhe adverte: “Você é tão arrogante. Mas isso pode não durar, sabia?” Ao quebrar uma lei (a mulher o lembra de que não é prudente tratar alguém tão próxima, porém ele argumenta que ninguém a conhece mais do que ele, numa patética onipotência narcísica da qual a queda será inevitável), ele abre caminho para que a Lei simbólica seja ultrapassada. E paga caro por isso: a mulher literalmente atravessa a arrogância do marido e, em uma das cenas mais fortes, imprime no real a falta que ele luta tanto para escamotear. Em Éden, o caos reina.
O filme faz pensar naquilo que está além do princípio de prazer, o gozo em seu limite, no limite da aniquilação... Nos lembra de que aquilo que foi recalcado permanece indestrutível no inconsciente ou, nas palavras do poeta: E o que desapareceu,/ converte-se para mim em/ realidade. Trier coloca em cena o erotismo e a agressividade da qual o humano não cessa de abrir mão em nome da segurança, da sobrevivência, da civilização. Mas aquilo que é banido não se conforma: insiste em retornar e algumas vezes de forma nefasta, o dia-a-dia nos prova isso. Já foi dito que nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie, foi cantado que o homem criava e também destruia...
Quando se trata do humano, o buraco, esse vazio ao qual tentamos insistentemente preencher de sentido, é mais embaixo. E é passível de explodir em non sense. Dostoiévski já nos alertara, com seu homem do subsolo, de que dois e dois nem sempre são quatro, e Éden parece trazer à tona o “Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (Zizek). Bem, essas foram minhas primeiras impressões...